Tribuna

A República de Nélida

Não há palavras diante da passagem de Nélida Piñon. 

Fogem de mim, todas elas, como se eu fosse um lobo em meio ao rebanho. Não sou capaz de reuni-las. 

Pudessem traduzir as lágrimas a sua potência líquida, o sentimento informe, a janela de ausência clamorosa.

Nélida foi um sol na vida de todos nós, ibéricos, de Espanha e Portugal, da América e Brasil. Geografia mítica de seu “coração andarilho”, dilatado e sem fronteiras, como se fosse um Tratado de Madrid, o de 1750, puramente literário, de amor inerme e de abertura, terra adentro. A utopia da palavra. Nas formas do silêncio, na força do destino.

Nélida traduziu as camadas ibéricas, com seus óculos e pupilas, tão novas e primordiais, em suas matrizes galegas, inafastáveis.

Um pacto de sangue com a literatura. Intenso, até os últimos dias, com o romance inédito, que virá. Iluminante. Iluminado. Como quem diz: “e o mosto de romãs repartiremos.”

Nélida congregava sinergias poéticas e proféticas. Olhar de lince, pressentia, adivinhava. Sabia do Outro, solidária, intuitiva. Habitou a palavra: encantada, transcendente. Amor a Teresa de Ávila, às muralhas da cidade, à capela de Bernini, em Roma. Santa Maria da Vitória.  

Certa vez jantamos no Tivoli, quando ela morava em Lisboa, disse-lhe: o romance já não pode esperar! Será de Teresa. Você é Teresa. Princípio feminino, terra e luz ...”

As vozes do passado e a sua infância. Belas profundas. Palavras que me consolaram. E aqui deixo mil páginas suspensas. 

Tenho para mim que o jantar ainda não terminou. 

As palavras-cordeiro, já disse, afastam-se de mim sem piedade, como se eu fosse um lobo, prestes a assaltá-las. 

Conheci Nélida à altura de meus vinte e poucos anos. 1989. Clube Central de Niterói. A república dos sonhos, nas mãos, e uma inafastável timidez.  Como saber que era um esboço de amizade?   

Acusava-me docemente, como um leitmotiv, de andar despenteado. No que estava completamente certa. Não passo de réu confesso. Mas atenuo, em carta, minha culpa: “Querida Nélida, eu me distraio facilmente. O temporal da República dos sonhos deixou meus cabelos revoltos, no tombadilho com Madruga. Sou brasileiro recente, como você. Bebi de outras águas mediterrâneas, carioca da gema. Desde então, seguem meus cabelos desordenados, buscando os fundamentos da República das letras, dos migrantes e dos sonhos”.

Nélida é um princípio solar, de esperança e adesão. 

Será o futuro a repetir que, em seu tão vasto império, o sol nunca se põe.

P.S.: Quando tomei a iniciativa de assinar um protocolo com a RAG, fiz surpresa para Nélida. Telefonei-lhe da Galiza, poucos minutos antes da reunião com o presidente Víctor Freixanes. Emocionada, a todos dedicou a memória dos afetos mais sentidos. A palavra-raiz, um horizonte misto, bifronte, a Galiza e o Brasil, espelho e imagem. Províncias de um mundo primordial.  

Marco Lucchesi
Expresidente da Academia Brasileira de Letras